quarta-feira, janeiro 11, 2006

Recado aos evangélicos brasileiros que votaram no NÃO

A partir de agora, os evangélicos que votaram no Não deveriam se sentir constrangidos:
1. De citarem, em qualquer circunstância, os conceitos pacifistas de Jesus
Mateus 5.9: “Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus”. Mateus 26.52: “Guarde a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão”. Entenda-se por “pacifismo” a ideologia, ou o sistema de crença, que sustenta a imoralidade de machucar ou matar alguém, para conseguir o que se quer. Os pacifistas acreditam que bons fins não podem justificar a morte.
Igualmente, seu entendimento de causa e efeito é de que bons fins crescem de bons meios, assim como um bom poema é composto de boas palavras. Os pacifistas acreditam que tanto a moralidade quanto o bom senso requerem que “vivamos as mudanças que queremos ver”. Lucas 6.29: “Se alguém lhe bater numa face, ofereça-lhe também a outra. Se alguém lhe tirar a capa, não o impeça de tirar-lhe a túnica”.
2. De afirmarem que crêem na teologia paulina de que o testemunho cristão não se molda à cultura de violência do mundo
Romanos 12.21: “Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem”.
3. De alardearem que admiram os posicionamentos de Gandhi ou Martin Luther King Gandhi:
“O que se obtém com violência, só pode ser mantido com violência”. Martin Luther King: “O homem nasceu na barbárie, quando matar seu semelhante era uma condição normal de sua existência. Nasceu-lhe uma consciência. Agora é chegado o dia em que a violência contra um ser humano deve tornar-se tão horrorosa como comer a sua carne.”
4. De se posicionarem contra o argumento das mulheres que defendem o aborto alegando que o governo não tem o direito de legislar sobre seu corpo
Milhões de cristãos evangélicos defenderam o direito de se portar armas usando exatamente este argumento: seus direitos constitucionais seriam invadidos pelo governo. Ouviu-se repetidamente que os evangélicos não apoiavam o uso de armas de fogo, porém defendiam o “direito” dos outros cidadãos de comprarem pistolas, revólveres e rifles.
5. De orarem pedindo proteção divina
Não há necessidade de se buscar proteção divina quando se podem usar armas. É esquisito sair de casa com um trinta e oito na cintura e ainda assim citar textos como o Salmo 91: “Aquele que habita no abrigo do Altíssimo e descansa à sombra do Todo-poderoso pode dizer ao Senhor: ‘Tu és o meu refúgio e a minha fortaleza, o meu Deus, em quem confio’”.
6. De criticarem os gastos militares globais
As nações mais abastadas do planeta conseguiram organizar uma instituição multilateral para promover o desenvolvimento econômico. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico reúne 30 países ricos. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano 2005, para cada dólar destinado à cooperação, cada um dos trinta países desembolsa 10 dólares para atividades militares.
Os evangélicos não deveriam se horrorizar com o fato de no ano 2000 terem sido gastos em armamentos 524 bilhões de dólares, e em 2003, pós-Bin Laden, 642 bilhões de dólares (um aumento de 25%). Agora eles precisam concordar com o fato de que em 2003 os 30 países membros da OCDE destinaram à cooperação com as nações mais pobres apenas 69 bilhões de dólares, ou seja, 10% do que se aplicou em armas.
Se alguém deve ter o direito de gastar alguns milhares de reais para comprar uma pistola, o caso dos Estados Unidos não deveria horrorizar — eles gastam 25% de seu orçamento com atividades bélicas e apenas 1% com a ajuda internacional.
A lógica armamentista precisará ser respeitada por aqueles que votaram no Não. Para eles, não haverá nada de errado com a pouca solidariedade mundial. Toda a ajuda que durante um ano tais países dão ao combate à aids representa apenas três dias de gastos com armas. Convém lembrar que a aids mata cerca de 3 milhões de pessoas por ano e a fome, 5 milhões de crianças por ano. Genocídio. A própria ONU pratica o que critica. Em 2005, ela está gastando mais com a manutenção de seus capacetes azuis em zonas de conflito do que toda a ajuda que os países ricos darão à África.
7. De afirmarem que são cidadãos de outro reino
O reino de Jesus não é deste mundo nem as armas de sua milícia, carnais. Os cristãos deveriam se sentir responsáveis por disseminar o que promove a paz, e nunca o que gera morte.
João 18.36: “O meu Reino não é deste mundo. Se fosse, os meus servos lutariam para impedir que os judeus me prendessem. Mas agora o meu Reino não é daqui”.
2 Coríntios 10.4: “As armas com as quais lutamos não são humanas; ao contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas”.
Talvez o referendo sobre o comércio de armas não fosse suficiente para resolver os impasses gerados pela violência urbana que se instalou no Brasil. Ele pode até ter sido convocado para camuflar a falta de uma política de segurança pública. Se o Sim fosse aprovado, talvez as cidades continuassem perigosíssimas.
Mas ele serviu o bastante para se perceber o quanto os evangélicos ainda precisam amadurecer em cidadania e a dificuldade em aplicar no cotidiano princípios em que imaginam acreditar, bem como que precisam aprender que o seu papel é caminhar na contracultura.
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim é pastor da Assembléia de Deus Betesda no Brasil e mora em São Paulo. É autor de, entre outros, Orgulho de Ser Evangélico – por que continuar na igreja e Artesãos de Uma Nova História. www.ricardogondim.com.br
Fonte: Revista Ultimato